quarta-feira

Coisas, etc. OU O que dá no mesmo



- Sempre cuidei das minhas coisas. De uns tempos pra cá, relaxei. Deve ser porque estamos juntos.
- Você acha?
- Sim. Nunca gostei que mexessem no que é meu. E agora...
- Ah, eu nem sei onde estão essas coisas de que você fala.
- Sabe, sim. É claro que sabe.
- Não sei, não, ora.
 O casal saía do avião. 

No tubo, ela ouvia a conversa, pensava: desço ou não de escada rolante até as bagagens?
Ia rápido, a bolsa cruzada no corpo, o notebook na mão. Como pesa, e agora a mala, como tudo pesa! Desengatou o carrinho e se dirigiu à esteira vazia.

- Dobro as camisetas de um jeito diferente. Sempre dobrei assim.
- Nunca reparei nas suas camisetas.
- Ah, é você que dobra agora.
- Só tiro da máquina, nem tenho tempo.
Interessante, eles riam.

A mala vermelha levou bem meia hora pra chegar.
E bom: descera na escada comum.

pândega


A festa dos noivos aconteceu no teatro do shopping center, na cidade ao lado. Ao lado assim como Capão da Canoa, de Atlântida; Rivera, de Livramento. Assistiram uma comédia cujo enredo era: como um casamento pode dar errado. Acostumada já, há um mês no estrangeiro, entendeu tudo. A peça, assim como o jantar, fora escolha da madrinha dos recém-casados: juraram perante o pastor e juiz à uma da tarde. Às oito da noite, começava a função. Era pra ser de humor, mas para uma brasileira que lia Millôr, passou mais por programa de auditório, só que muito bem produzido, desses em que uma pessoa começa a rir da piada para entusiasmar as outras. Resultou em pândega mesmo, e na definição do dicionário: “festa alegre, estrondosa, farta de comidas e bebidas. Insensatez na maneira de se comportar – insanidade. Brincadeira sem graça ou indelicada.” De fato, no jantar, ela pediu o que lhe pareceu um bife. Ao ver o pernil em seu prato, alguns minutos depois, deu-se por satisfeita.

terça-feira

I do.

Naquele fevereiro, alisou as rendas. Lá, a neve caíra toda a noite, o que ela viu ao abrir a porta da casa. As janelas escuras dos vizinhos aumentaram a vontade de tentar a ligação para a família. Come away with me, in the night, cantava Norah, e a lareira a gás não trepidava. Só a colcha de crochê antiga fazia um lar. Ele chegou do cassino com o jornal, a grama sintética não branqueara tanto como cá. No dia do casamento, a manicure oriental não tirou as cutículas. Ao terminar de lixar as unhas, pediu que a jovem fosse lavar as mãos. Porque o mundo é redondo, responderia, se questionada.

segunda-feira

quinta-feira

Lendo, pelo fim do mundo

Lendo, pelo fim do mundo, a aventura de Miguel, cineasta chileno, absolutamente proibido de regressar ao seu país na era Pinochet e mesmo assim regressando, maquiado e travestido de burguês uruguaio, e encontrando, em Santiago, palco de mais de 40 mil mortos, 2 mil desaparecidos e 1 milhão de exilados, uma cidade também maquiada, ostentando um "brilho material com que a ditadura tratava de apagar o rastro sangrento". Lembrando da descoberta de pertences do pai de Marcelo Rubens Paiva, há poucos meses, em casa de um general brasileiro. E nunca esquecendo que um dos melhores do mundo é o escritor que chamam carinhosamente de Gabo: Gabriel García Marquez .

quarta-feira

camerata


Eu chegava na cidade, depois de andanças. Ainda de corpo, que as outras partes sobrevoavam. Mas eu vinha. 

E escutei o chamado: quer participar do musical que estamos fazendo sobre o Gainsbourg? 
Quer, Eli?
‘Quero’ foi o que disse, ainda na popa, pouco sabendo se desceria devagar ou aos saltos. Aos saltos e devagar, desse jeito seria, é. 
Até para o ‘quero’ vi que descia um pouco mais, para tocar os pés. 
Eles já pisavam. 

Eu vim ao mundo para ser eu. Eu vim para ser eu. Vim para ser. 

A javanesa me esperava. Quando nos juntamos, a Cínthya e eu, para fazer a versão em português, o que faltava para eu me aproximar de mim desapareceu. Contamos os versos, observamos as rimas e quisemos aliterar, como ela diz, e soa tão bem: a-li-te-rar. Gosto da palavra e não quero procurar seu significado. Sei o que é, mesmo não sabendo. 

Aprendi a nossa Javanesa um pouco, nos ensaios. E vou aprendendo a cada vez que tenho o microfone nas mãos. 
É no meio da canção que sei que o que estou fazendo é eu. Nos primeiros compassos, e depois, neste momento justo (e não há outra palavra para dizê-lo: é neste momento justo) em que não canto, pendo a cabeça, me deixo, sozinha, entrar no pulso do meu coração, e inspiro para dar a próxima nota, é aí que vou sonhando, e existindo, e tendo de mim o melhor que quero. 
Sou esta.

sábado

prumo

pru= voltar, sempre voltar
mo = alcançar
pru = descansar
mo = não julgar
pru = contemplar
mo = sossegar
pru = contemplar sem julgamento
mo = conversar com o vento
pru = inspirar
mo = entoar
pru = expirar
mo = entoar
pru = imitar o vento
mo = estar
pru = ser
mo = ser
pru = ser
mo = ser

segunda-feira

o guapuruvu


como fazer de seu jotacá uma cabana na floresta - tomo 16


Naquela noite, a garota e seu partner voltaram do bar na carona do caminhão da Coca-cola. Madrugada, pouca gente, ela sabia dirigir, mas não tinha carro. Ele tinha carro à disposição, mas ainda iniciante na autoescola, não andava no corcel de noite. E como os pais dela não gostavam da filha cantando em bar da Cidade Baixa, não emprestavam a belina. Sentaram nos engradados, ele segurando o violão, e os bolsos forrados do couvert artístico - coisa de três pila por cabeça, que o violonista e a cantora crooner dividiam a 1,50 para cada um, houvesse só um vivente no bar assistindo, era isso que cada um levava pra casa. Havia poucos bares de música ao vivo na cidade, do tipo voz e violão. O Cokeru´s era de um argentino que dera por aí com os cornos, saído sabe-se lá de quê. De vez em quando, ele pedia que a gente fizesse Alfonsina. E a gente fazia. Cantava junto, o argenta. A garota de 19 anos atraiu muitos amigos seus e de seus amigos para o estabelecimento em frente ao Pão dos Pobres. Ovelha negra, da Rita Lee, não podia faltar. Era inverno. Ela gostava de usar o blusão tricotado pela irmã, todo colorido. Cabelo curto, pegava o microfone de madeira, isso mesmo, de madeira!, olhava bem pra ele. E cantava noite afora.

domingo

Como fazer de seu jotacá uma cabana na floresta - tomo 16

Foi por literatura que não me afundei no teu pescoço e morri na gola da tua camisa, foi por amor a Mário, Carlos, Julio, Clarice (os amores possíveis), foi por letras de Renato, por páginas de Florbela, por sussurros de Gullar, esse meu nobre pobre amigo de agosto, foi pelo mês de agosto que não sucumbi a teu rosto pequeno mas teu rosto no canto da tela - ausência tua, bastava uma tecla minha. Foi por literatura, por essas infâmias, foi por nossas estranhas maneiras de comportamento, foi por um belo instrumento de fala, foi porque tenho agora a fala rala, porque hoje não é novembro, porque chove, porque parou de chover, porque na foto o céu é sempre azul e liso engomado no ferro a vapor, que literatura, que palavras duras chegando a pontos finais, o ponto marcado, o encontro. Foi por querer Hilst e dormir com Andrade, acordar suada, os tapetes peludos e a cara aberta do Ferreira no retrato, foi por te amar de quatro, por feder a minha blusa e por não saber mais (perdendo os traços de Beatriz) como é o beijo do teu beijo que tocou minha boca que beijou a tua e te deu o beijo. Foi por literatura, pelo capítulo sete, foi pela esquina de nazca com aquela outra, foi porque pensei e se eu tivesse ido com o garçom do restaurante ao lado do teu prédio naquela tardezinha?, ah, foi por literatura, vai, porque era teu o sorriso irônica a covinha o doce dentro do ouvido fazendo perfume na praça, foi por correr nua ao lado do cavalo que soltaste das correntes aos dois graus e meio, a tevê ligada, a senhora chorando na portaria, os casais entrando contentes, mais contentes ainda saíam, foi pelos hífens que eliminaram da ortografia, pelos sanduíches de miga no Rivadavia, pelas migalhas que se produzem entre a noite e o dia, pelas tardes de trem, preguiça, uma poltrona aberta com o teu corpo dentro, teus olhos voltados pro firmamento, uma porta arrancada, às pressas, teus vazios na escada, a massa morta de mim ao lado do gato, os berros de que não fui eu, a esteira, (Bersuit nos alto-falantes anunciava a partida, minha, para a terra, de ninguém, no acaso. Ia, pelo bem).

[Para ler com voz de Elisa Lucinda ou pedir pra ela ler, se chegar perto]

sexta-feira

papel aceita tudo



“Continuo te amando”, ia escrito no visor do celular. “Continuo te amando”, solto, sem ponto final.
Viver amando é outra coisa. Continuar amando são outros quinhentos.
Escrever é só escrever, o papel (o visor) aceita tudo, disse um dia lá perdido nos anos alguém a quem ela amou tresloucada, lembrando dele e esquecendo de si. Lembrar dele e esquecer de si: que forma de amor é esta? Amor às coisas da pessoa, seu respiro, amar quando se agacha para pegar uma chave que caiu no tapete, quando se barbeia, quando sai e bate a porta furioso, volta dois dias depois, detonado, camuflado, travado, rendido, sujo.

Será ela é a maior amadora no amor?
Por que pensa que é a melhor que ama?

Teve homenagem em pedra, e se vão anos: na parede de uma curva no centro da cidade, gravou ele o emblema que construíra em madeira como pingente para o colar. Gravou a piche, as iniciais dos dois. Por muito tempo, ficou ali, a história que nenhum jato de lavagem industrial conseguia eliminar. Emblemas não se lavam.
Já o amor... é só abrir a torneira, a água que for irá desmanchar o amor.

Amar com a boca escancarada, mostrando todos os dentes, é o maior perigo de toda a vida. O maior mistério, a vida mesma, ali, acontecendo, e não há recuo. Ao saltar no precipício, em pleno voo se lança a pessoa, desesperada, balançando as pernas no ar. Não existe "ah, não brinco mais", o desfiladeiro é real, pode encolher o corpo, baixar a cabeça para não ver, no entanto, e ademais, todavia, nevertheless... vai se perder de si. O inevitável. O ininventável.

Ninguém aguenta tanta liberdade. Entretanto, quase toda a gente aguenta, se viva. O amor é o salto no abismo, não o esborracho lá em baixo.

O esborracho é provável, mas se souber e quiser levantar o voo, e seguir no firme aumento de sua vida, poderá adiar.
O esborracho.

Que vida não se adia.

terça-feira

Uma nova vez da vida na pessoa

Fernando Pessoa in Eros e psique


          Ele vem seguro
          E vencendo estrada e muro chega onde em sonho ela mora.
          Inda tonto do que houvera, a cabeça em maresia,
          Ergue a mão, encontra a hera
          E vê que ele mesmo era 
          A princesa que dormia.

                                                                    

sábado

her taste of adventure is not exhausted

they say it's the way you wear your hat
i say it's the mind you have on at
they say it's me, my style, my tos and fros
i say it's the weather, the blues, the wooes
they say your pajamas were cute
i say your flavors are absolute
and so we go on saying this and that
till we cannot stop
and the night becomes a nightmare
full of reasonable thoughts
not until i won't be able to sleep
i'll watch you in deep
in your dos and dids


aos pés


Estivemos aos nossos pés, ensolaradas. Ela e eu, depois de andar no píer. De saída de banho azul turquesa, sapatinhos de moleca; eu, de havaianas e o biquíni floreado, lavara as pernas na beira. No mar, não tem mal nenhum. O que tem, as ondas levam. E quando trazem de volta o mal, se é que o mal vem junto, já não estamos mais ali. Ele nos salva, a todo instante. É o itinerante que nunca desiste. 
Escreveu a linda Cínthya Verri: “se o mar pudesse acenar/ele nunca voltaria”. 

quinta-feira

so long, gregory


Você, que tantos desuniu, pois enquanto alguns afirmaram não perder um episódio de sua série, outros mentiam dizendo que não gostavam de você. E há, é claro, os que simplesmente o ignoraram.

Você, que foi capaz de pôr sedativo no café de seu melhor amigo para injetar nele a primeira dose de quimioterapia sem que ele concordasse, só porque precisava dele por mais tempo vivo.

Você, que tirou o respirador da boca de um paciente em agonia, para que ele confessasse uma verdade de que você suspeitava, e assim pudesse curá-lo, segundo seus delírios e prepotência. Sim, naquele episódio, você o curou.

Você, que foi planejado pela TV norteamericana, mas é um inglês, e por isso posso dizer que o adoro.

Você, House, por quem me apaixonei perdidamente, mais do que por Marcos Paulo na telenovela Carinhoso, mais do que pelo Capitão Nascimento em Tropa de Elite 2 ou Andy Garcia em Modigliani, mais do que por Jorge Aragão e sua banda tocando a Ária da Corda Sol ou o personagem sueco de A Delicadeza do Amor.

Bom, quanto ao Andy Garcia... everybody lies.

Você! Que pica uma bolinha no chão do consultório enquanto tenta encontrar um diagnóstico para uma criança moribunda.

Você, que chega em casa às cinco da manhã do hospital, senta no piano e toca “I’m sentimental/so I walk in the rain...”

Você, que manda sua equipe arrombar a casa do paciente usando os conhecimentos de ex-marginal de um de seus médicos, para que descubra na rotina do doente algo que possa solucionar o que parece insolúvel.

Você, que é o contrário da letra de My Way, embora pareça ser seu sinônimo.

Você, Greg, viciado em vicodine, que tem um buraco na perna e manca como Carlitos mancaria se fosse manco.
Você, que afirma ser a pessoa mais perturbada do mundo.
Você, que disse a Cuddy: “Eu fiz coisas horríveis para você. E vou fazer de novo. E então, você vai ver que eu não mudei.”

O homem a quem dá vontade de gritar: desumano!
Você, que não quer evitar, que não pode evitar, ser quem é.

“My life is pain. It has changed me. It made me a harder person.”



Eu não sei como vai ser minha vida sem você, House. Só sei como ela foi até agora.

quarta-feira

o urso, o gigante


"Eu me seguro em você e você em mim. Assim nenhum dos dois cai dessa altura. Depois giramos." E dançando sobre o abismo, o impasse entre o urso e o gigante foi resolvido com um simples abraço.

(Adaptado da postagem "A terceira margem do rio" do blog http://www.ecofuturo.org.br/premio/blog/show/753, sobre o livro A ponte, de Heinz Janisch e Helga Bansch, editora Brinque-Book.)

terça-feira

Ora:

                                                                                                     o silencioso agora.